Um plástico transparente forrava sua mesa, e sobre ele encontravam-se todas as outras ferramentas que ela julgava necessárias para que pudesse se refugiar de sua própria vida, do mundo em geral. Um lápis já meio gasto, com a ponta arredondada e pronto para ser trocado, pois seu tamanho refletia seu uso constante e desleixado, designado apenas para traçar o que mais tarde refletir-se-ia apenas através das cores esparramadas por um pincel. Uma lata de tinta branca semi-aberta pelo descuidado do dia anterior, com um espeto de madeira, mal desenhado e cheio de farpas cujo uso se dava para mexer o liquido espesso que se cobria de água por decantação que sofria durante seu repouso. Ao lado, diversos pincéis jogados, deixando transparecer seus tamanhos variados, mais freqüentes no tamanho 8 e 10, que fazem traços nem tão grande, nem tão pequenos, mas que ela julgava serem os melhores para exprimirem rapida e detalhadamente cada cor do desenho que lhe houvesse vindo à mente. Um pigmento de cada cor, repetindo-se nas cores quentes em quantidades, já que o vermelho, o laranja, o rosa choque, o amarelo mostarda, faziam-na sentir como se o sangue corresse-lhe quente pelas veias, e a cada pincelada era como se a vida brotasse-lhe das entranhas e fosse direto para a tela, transformando-se não apenas nas formas que as pessoas veriam após o término da pintura, mas em um pedaço de sua felicidade e de sua vida que estava escrito sem letras, e para ninguém mais perceber da mesma forma com que percebia. Ao olhar cada pincelada que havia dado revivia a memória que a havia visitado no exato momento, ativando diferentes emoções e angústias.
Às vezes lhe vinha à mente um episódio recente. Era o momento que tinha para refletir qualquer mínimo detalhe diário que lhe houvesse causado desconforto, dúvida; que lhe houvesse despertado uma suspeita de algo bom, ou a incerteza da chegada de algo ruim. Era sempre assim enquanto coloria pequenos pedaços de telas feitas de lona pregadas em estrutura de madeira, ou quando desenhava caixinhas de madeira crua que decidia comprar para variar seus trabalhos.
Quando se cansava do fluxo de pensamentos, a enxurrada de memórias recentes ou antigas, a avalanche de planos que pretendia para o futuro ou que simplesmente gostava de mentalizar embora julgasse totalmente inválidos para o que viveria de fato, ligava uma música que a fizesse flutuar, como se ela mesma fosse o pincel e dançasse por sobre o desenho, colorindo-o onde desejava que fosse de determinada cor. Era o momento em que mais fugia da realidade. Sentia-se dançando uma valsa, como uma bailarina solitária, de olhos cerrados levemente, cabeça erguida, e respiração suave. Mesmo o ar lhe parecia mais fresco, como uma brisa matinal carregada de orvalho. Podia sentir essa brisa acariciando seu rosto enquanto flutuava por sobre as pontas de seus dedos dos pés. Era tão leve quanto uma pena, mas livre das mãos de qualquer escritor que pudesse guiá-la. Movia-se como bem queria, levando cores certas e erradas aos lugares que melhor julgava se encaixarem; e se não gostasse do resultado, levava mais cores até que estivesse não perfeito, mas exato. E ao deparar-se com o quadro feito, pronto para ser envernizado, voltava para o mundo real. Abria os olhos, que já estavam abertos, mas tão mórbidos quanto os olhos daqueles que deliram, e respirava o ar pesado da realidade, que era seco e ríspido, mas que seu corpo necessitava inspirar. Seu corpo e seus pés tornavam a pesar-lhe, como se fossem uma carga, e já não sentia-se livre como a bailarina-pena que fora momentos atrás, valsando seus devaneios em cores e texturas.
Parecia-lhe como se fosse um orgasmo. Um tanto mais longo que um real orgasmo, mas exatamente igual. Sentava em sua cadeira em frente aos seus materiais, pegava um pouco de tinta branca e despejava em uma bandeja com uma colher já suja de outras vezes, pingava uma gota de cada pigmento que imaginava precisar para tornar a figura que assombrava seus olhos real, uma em cada espaço da bandeja, ligava a música e segurava o pincel que achasse mais adequado para desencadear a explosão de cores e traços que viria a seguir, hipnotizava-se com os movimentos aleatórios de seus pulsos, um portador das cores produzidas por misturas na bandeja, outro suporte para a ferramenta que transportava a cor ao desenho, fugia da realidade e começava a valsar, até que aquele prazer chegasse a seu ápice na assinatura da figura que havia se concretizado, então o mundo voltava a ser insípido como costumava ser geralmente, e suas energias para começar uma nova obra estavam exauridas. Sentia-se feliz e realizada pela obra que acabara de terminar, e infeliz por tê-la terminado tão rápido, ao mesmo tempo.
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